30 August 2015

whale of a tale | chicago

chicago chicago
...I wanna tell a whale of a tale about your kissing,
whale of a tale about your hugging too...
you’ve got an octopus squeeze when you hold me tight
and an electric eel kiss that makes my eyes shine bright...

(Wynonie Harris)
Relembrar, recontar uma viagem de há tantos anos é exercitar um jogo de sombras. Os detalhes interessantes que poderiam formar um relato de viagens já se foram e só sobram uma ou duas impressões ampliadas pelas lentes da nostalgia, que dão a forma das lembranças. O resto é preenchido por pequenas ilusões.
A viagem de New Orleans a Chicago não durou mais que um par de dias, intercalados por uma dezena de noites nos bares do caminho. Os acontecimentos da viagem se resumem hoje às longas travessias das pradarias em ônibus, pontuadas de uma ou duas paradas, e às canções que eu ia ouvindo em longos dias nos ônibus e longas noites nos bares.
Uma grande viagem pois, para um pequeno budget. Mas uma viagem que cabia exatamente no vazio daqueles meus dias, entre a ida e a volta dos meus amores daqueles anos.

12 de fevereiro de 1994

27 August 2015

quem

Quem um dia dançou com os pés de outro?
Todos os que dançam, todos
Apenas dançam os próprios pés.
Quem pensa na imortalidade do outro
E durante seu próprio sonho
Sonha com o sonho do outro?
Quem, no nascimento do menino humilde,
Pede sua coroação pelos reis?
Quem manda violetas ao pobre encarcerado?
Quem se sente poeta pelo que o não é?

9 August 2015

da nostalgia como legado | on nostalgia as a legacy

visitaçõesBenjamin 42 High Key
Quando descobri que meu pai havia vendido a casa na praia onde passei todos as minhas férias de verão, o que me invadiu foi desapontamento. É certo que era seu direito, era uma herança de meu avô, e naqueles tempos o dinheiro da venda seria claramente útil. Já não a frequentávamos como antes, as horas de viagem para chegar a ela mais a vida de jovens adultos que levavámos minha irmã e eu já haviam feito que a casa estivesse a meio caminho de uma idealização. Para mim, aquela casa era o mais próximo que uma família de imigrantes tinha de raízes. Mesmo que eu a frequentasse pouco, sua existência criava um ponto de referência. Era uma das estrelas fixas da minha vida então.

Aquela casa se confundia com minha infância, com a parte despreocupada dela. A vida era simples, desprendida, livre durante as semanas que passávamos lá a cada ano, longe dos estudos que me absorviam e do cotidiano cinzento das grandes cidades onde cresci.

Eu tinha a expectativa que meu pai reconhecesse a importância daquele lugar para mim e que ele assumiria um papel de guardião e transmissor, garantindo que aquele paraíso da minha infância chegasse aos seus netos. Não foi assim.

***

Albert Camus foi um determinado opositor da pena de morte. Era uma posição pública, articulada, descrita num ensaio « Reflexões sobre a Guilhotina ». Era também uma posição visceral.

Sua origem vem de um episódio da vida de seu pai : certa vez o pai de Camus se levantou muito cedo e foi assistir só à execução pública de um condenado pelo qual ele tinha uma repulsa particular. O homem havia assassinado uma família inteira, incluindo crianças pequenas. Não havia dúvidas sobra a sua culpabilidade. A punição era conforme à lei, a pena era clara, límpida. A execução aconteceu na hora e lugar marcados. O pai de Camus voltou lívido do espetáculo, deitou-se doente e por várias horas só se levantava para vomitar. Nunca mais tocou no assunto com ninguém.

Camus não conheceu seu pai, morto na primeira guerra mundial quando ele tinha um ano. Cresceu educado pela mãe e pela avó materna, tudo que dizia respeito ao pai era raro. E apesar disso, essa lembrança foi uma das heranças da infância que ele carregou pela vida inteira, ideal, íntegra, una com ele mesmo.

A nostalgia daquele pai desconhecido foi uma espécie de legado.

***

Nostalgia vem do grego νόστος (a volta para a terra natal) e ἄλγος (dor) O termo foi criado por um médico alemão no século dezessete para descrever uma doença observada em mercenários suiços, que caíam doentes quando longe de suas terras. A palavra foi adotada por outros exércitos, pelo movimento romântico, por viajantes, poetas, por nós todos.

Terminou por significar o sentimento de falta, de distância, por um tempo mais feliz, pela infância, por um país ideal e inatingível que existe em algum lugar na memória. Uma terra do nunca, intocável, intangível.

***

Talvez fosse o que fizesse os mercenários suiços temíveis e ao mesmo tempo o que os tornasse doentes, nostálgicos, a sensação de não haver mais possibilidade de volta ao país, o fim da esperança. Diz-se de alguém desesperado que ele não tem mais nada à perder.

Ou talvez não. Prefiro pensar que a nostalgia seja um fundamento da existência, de quem somos e do que nos tornamos. O norte de nossas esperaças.

***

Meu filho que nunca terá a oportunidade de conhecer aquela casa na praia. Na realidade não importa, não é parte da sua vida, faz parte da minha. Meu pai ao vendê-la fez seu papel de Pai : cortou o que restava do cordão umbilical. Ao permitir que a casa desaparecesse deste mundo fez com que ela permanecesse em mim. Que outras lembranças viriam depois, se ela tivesse continuado conosco ? A distância real para visitá-la e a dificuldade do esforço financeiro de mantê-la provavelmente fizessem sua existência declinar, tornaria-se uma vaidade, de uma obrigação familiar.

Olho para meu filho e penso naquela casa, sei que o que realmente importa é que sua nostalgia será nosso legado involuntário, uma parte importante e invisível do homem que ele será. E que eu só posso esperar que a nostalgia que lhe deixo seja tão rica como a que me foi legada.


When I learned that my father had sold the house on the beach where I had spent all my summer vacations, I was invaded by disappointment. For sure, it was his right, the house was left to him by my grandfather; in those days that money would be clearly useful. We did not went to visit the house as before, the many hours needed to reach it and the young adult life that me and my sister lived had already almost turned that house in an idealization. For me that house was the closest a family of imigrants could have as roots. Even if I seldom visited it, its mere existence was a reference. It was one of the fixed stars of my life at that time.

That house and my childhood, along with the carefree part of it, were almost the same. Life was simple, loose, free during the weeks spent there each year, away from school that absorbed much of my time and far from the grayish life in the big cities where I grew.

I had the expectation that my father recognized the meaning of the place for me. And that he would fulfill the role of keeper would relay it to me. That he would ensure that the paradise of my childhood reaches his grandchildren. It turned out otherwise.

***

Albert Camus fiercelly opposed capital punishment. It was a public, articulated opposition, it was developed in a essay "Reflexions on the Guillotine". It was also a visceral position.

The origin of this position is in a episode in the life of his father. Once, Camus's father woke up very early to watch the public execution of a man. He was particularly disgusted with that man, he had brutally murdered a whole family, including small children. There was no doubt about his guilt. The punishment was according to law, the sentence was limpid. The execution took place on the scheduled time and place. Camus's father came back sick from the execution, he laid down ill and for many hours would only leave bed to throw up. He never mentioned the matter again.

Camus did not know his father, who died during the first world war when Camus was one year old. He was raised by his mother and grandmother, everything related to his father was scarce. Nevertheless, the recollection of this story was part of the heritage that he carried through his life. An heritage that was whole, ideal, one with himself.

The nostalgia of his unknown father was a kind of legacy.

***

Nostalgia comes from the greek word νόστος (the Homeric homecoming) and ἄλγος (pain). The term was created in the seventeenth century by a german doctor to describe the sickness observed in swiss mercenaries. Many of them fell ill when away from their homeland. The word was then adopted by other armies, by the romantic movement, by travellers, by poets, by us all.

It ended up meaning the feeling of distance, the missing of happier times, of childhood, of the country that is both ideal and unreacheable that exists somewhere in our memory. A Neverland, untouchable, intangible.

***

Maybe this very feeling was what made the swiss mercenaries feared and sick, nostalgic, the sensation of not having a way back to their country, the lack of hope. It is said of the desperate that they have nothing to loose.

Maybe not. I prefer to think that nostalgia is one of the fundaments of our existence, of who we are and of who we become. The north of our hopes.

***

My son will never have the opportunity to know that house on the beach. In fact, it does not matter, it is not part of his life, it is part of mine. When he sold it, my father unknowingly played his role as a Father: he cut what was left of my umbilical cord. When he allowed the house to disappear from this world, he allowed it to live in me. What other recollections would I have if we kept it? The distance prevented us to visit it, the financial effort to maintain it would probably cause it to decline, it would have become an encumbrance, a family obligation.

I look at my son and think about that house. I know that what really matters now is the building of his nostalgia, it will be our involuntary legacy, an important and invisible part of the man he will be. And I can only hope that his nostalgia will be as rich as the one that was left to me.