27 September 2015

compared to what | memphis

graceland graceland
graceland
Preachers filling us with frightening
they all trying to teach us what they think is right
they really got to be some kind of nuts
I can’t use it
I am tryin’ to do a real compared to what

(Eddie Harris)
Quando eu desci do ônibus em Memphis na véspera, eu não pensava em outra coisa. O sol alto e radiante anunciava a peregrinação à Graceland, templo, túmulo, residência. Eu fingia que ia visitar como simples turista a casa d’ele, em fim de adolescência eu antecipava alguma experiência mística que trouxesse um pouco de sossego. Eu recordava as noites e tardes da noite que eu passei ouvindo velhos LPs ainda antes de sair viajando pelo mundo, tempo em que eu pensava que as canções me diziam algo.
Na realidade, as canções não me diziam mais nada. Por entre os carpetes verdes, as estampas zebradas, as cores exageradas, descobri que ele também me abandonou. Graceland era um pedaço do passado dele, as músicas de que eu me lembrava tão bem eram mais um pedaço do meu. Nem a vida dele, nem a minha, me pareciam ser exatamente as vidas que eu nos tinha imaginado, romântica, heróica, beirando o místico. Eram no fim das contas, vidas ordinárias, a dele, a minha. Cada uma à sua maneira.
Graceland era um túmulo enfim, com uma mansão construída em torno. Restava pouco a fazer, senão contemplar aquela vida impossível, em silêncio de preferência, para não acordá-lo da sua siesta no segundo andar.

16 de fevereiro de 1994

24 September 2015

iniciação

Constrói-se a linha sem ajuda.
Vive de sua lágrima o cristal,
A asa do anjo não se traduz
Em plástica,
E o som ignora o eco.

O espírito no escuro se levanta
Sem flecha e oriente certo.
Vazio de pássaros não se vela o céu,
E, sem mover-se, a pura chama arde.

20 September 2015

drowning man | memphis

memphis memphis
memphis
How much more can I stand
When you are pouring water on a drowning man?
You put me on the right track
And then you let me down
You stab me in my back, yes you do baby
Every time I turn around

(Otis Clay)
Cheguei à Memphis num fim de tarde, a estação ficava no centro da cidade, frio e imundo. A viagem durou o dia inteiro, e as cidades seguiam suas cores, vilas negras, vilarejos brancos, o rio e o blues não misturaram os homens. No Greyhound vi estudantes canadenses voltando do Mardi Gras, bêbados e barulhentos. E conversei com um rapaz que esperava ganhar na próxima cidade o suficiente para continuar para a cidade seguinte. Jack Kerouac talvez não tenha inventado toda aquela história, afinal, tive a impressão que ele estava on the road.
Atravessamos uma paisagem que era pontuado de cidades brancas ou pretas, prados verdes, com cada cidade no caminho mostrando a sua cor. Na estação de Memphis, eu era alvo de olhares curiosos, um branco perdido numa multidão negra, estrangeiro não pela cor, mas pela idéia da minha presença ali. Os Estados Unidos são cores primárias. Da porta do Bed & Breakfast afastado do centro, um Hell’s Angel gordo, indiferente e de longas barbas me apontou para o galpão destinados aos viajantes sem fundos, alguns passos mais longe. A casa antiga parecia já um pedaço de uma wasteland decadente, o galpão de camas comunais, desfeitas, mal-feitas estava em um círculo do inferno além. Tudo, o galpão, o Bed & Breakfast, o jardim, Memphis, os meus dias, era devastação.
No fim-de-tarde amarelo à margem do rio eu comecei a me perguntar o que eu poderia estar fazendo de fato. O que me levou até ali, os nãos recebidos naqueles meses, daquela moça distante, dum destino qualquer, não me levava mais além. O pôr-do-sol ia terminar de uma hora para outra, e eu queria acreditar que o Mississipi ia levar a solidão embora. Mas eu não era daquele lugar, nem o rio, nem a música me conheciam.. Tudo o que eu podia esperar da parada naquela cidade era uma espécie de clemência, esperar que o rio não me levaria ainda mais longe na minha viagem.

15 de fevereiro de 1994

17 September 2015

the road not taken

Two roads diverged in a yellow wood,
And sorry I could not travel both
And be one traveler, long I stood
And looked down one as far as I could
To where it bent in the undergrowth;

Then took the other, as just as fair,
And having perhaps the better claim,
Because it was grassy and wanted wear;
Though as for that the passing there
Had worn them really about the same,

And both that morning equally lay
In leaves no step had trodden black.
Oh, I kept the first for another day!
Yet knowing how way leads on to way,
I doubted if I should ever come back.

I shall be telling this with a sigh
Somewhere ages and ages hence:
Two roads diverged in a wood, and I—
I took the one less traveled by,
And that has made all the difference.

13 September 2015

inside out

Inside Out

just like a fish | new orleans

new orleans new orleans
new orleans
it’s not the things you say
it’s what you use for bait
I am just like a fish
the way I keep going for your line"

(Esther Phillips)
Me veio a sensação que ela estava por ali. Não quando eu passeei solitário pelas docas, mas quando eu atravessei a multidão que seguia o Mardi Gras. O que me trouxe aquela impressão ? O comportamento livre das moças sobre os balcões ? Talvez. Aqueles olhos mais que verdes que me abordaram na penumbra de um beco entre dois casarões, « Você está sozinho na cidade ? » A atmosfera festiva que me fazia sonhar com uma vida mais livre ?
A decadência rústica do Mardi Gras deste lado do oceano lembra pouco a decadência elegante da margem oriental do Atlântico, de Veneza. Ouve-se pouco do sonhado jazz, e a perdição das moças nos caminhões se compra fácil com um colar de contas de plástico. Um mercado livre sem graças, fácil e plástico e músicas inaudiveís. Só os artistas de rua, com suas ambições modestas desenhavam alguma alma para a festa.
De artista de rua em artista de rua, fui seguindo as ruas da cidade, Bourbon, Royal, nomes que lembravam aventuras de outros tempos, não minhas mas da cidade. A bagunça da festa não apagava aquela melancolia que me invadia sempre que eu pensava no passado, não tão distante, de alguns meses antes.
Soube anos depois que ela esteve ali também, a sensação de presença não foi um sonho de amor perdido, por um dia apenas não nos encontramos. Não poderia ter sido diferente naqueles anos , o destindo era um nó, aquela presença, a nostalgia, minha decisão de entrar em um Greyhound em direção ao norte para escapar da balbúrdia de New Orleans.

14 de fevereiro de 1994

10 September 2015

os dois lados

Deste lado tem meu corpo
tem o sonho
tem a minha namorada na janela
tem as ruas gritando de luzes e movimentos
tem meu amor tão lento
tem o mundo batendo na minha memória
tem o caminho pro trabalho.

Do outro lado tem outras vidas vivendo a minha vida
tem pensamentos sérios me esperando na sala de visitas
tem minha noiva definitiva me esperando com flores na mão,
tem a morte, as colunas da ordem e da desordem.

6 September 2015

i don't know | new orleans

new orleans
My papa told me, my mother sat down and cried,
Say, "You’re too young a man, son, to have the many women you got"
I looked at my mother then, I didn’t even crack a smile,
I say, "If the women kills me, I don’t mind dyin’"

(Willie Mabon)
Onde você vai ficar hospedado em New Orleans?". O tipo ao me lado vestia um paletó claro sobre a pele escura. Acompanhava um sorriso cinematográfico, desses de anos frequentando uma cadeira de dentista. O todo sobre mais de um centena e meia de quilos.
Ele também ia para o Mardi Gras, e acho que era a antecipação da festa que o levava a regar o suco de laranja com um líquido dourado. O suco de laranja era servido pela aeromoça, o complemento dourado saia de uma garrafinha prateada discretamente escondida no bolso interno do terno.
Ele ia com quatro amigos, tudo arranjado, hotel reservado, carro alugado, a festa longamente antecipada. Não fosse o assento do avião, acho que ele teria caído para trás quando eu respondi que não sabia ainda onde ia dormir naquela noite. "Resolvo no aeroporto". Hábitos de outras viagens e uma certa inocência que não cabiam em New Orleans.
Era cedo no dia ainda, e por aqueles anos me importava pouco onde eu iria pousar. Hábito orgulhoso talvez, mas meu hábito, nunca havia me falhado a confiança nos arranjos de último minuto, de que o mundo me acomodaria. Mas para ele, o fato de um branquelo estrangeiro ficar desacompanhado e despreparado em New Orleans em pleno Mardi Gras era sim uma crise maior. Impossível entender como eu pude ter uma idéia dessas, ainda mais no meio do Carnaval. Me ofereceu whisky, ajuda e carona, nessa ordem. Recusei.
Queria ficar sozinho, longe de grupos barulhenots, mulheres e confusão. Uma idéia idiota vista de hoje em dia: se era isso que eu queria, não era New Orleans a direção correta. Não naqueles dias, ao menos. Do aeroporto eu consegui encontrar o último buraco disponível na cidade, nos fundos de um YMCA. Naquele fim de YMCA eu consegui passar minhas noites, mas não os dias. Um cubículo bolorento, com lençois rasgados e uma janela de vidro quebrado dando para lugar algum. Sem planos precisos para os dias seguintes. não tinha outra opção a não ser vagar pela multidão embriagada e embalada pela música.

13 de fevereiro de 1994

3 September 2015

reflexão n.1

Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho
Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio
Nem ama duas vezes a mesma mulher.
Deus de onde tudo deriva
É a circulação e o movimento infinito.
Ainda não estamos habituados com o mundo
Nascer é muito comprido.